Uma vida é uma conjunção de caminhos que se entrecortam, atravessados por traços e marcas de transeuntes com destino sempre incerto, por mais projetos que empenhem. Nesses trajetos errantes, entramos em contato com pessoas e coisas que nos impulsionam, às vezes a seguir em frente, às vezes a recuar, mas sempre a mudar de caminho. E à fotografia não escapa essa responsabilidade – falamos disso no nosso texto do Dobras Visuais e em tantos outros momentos aqui pelo blog.
A consciência de que existem caminhos pré-andados por outras pessoas que podem servir de guias para nossos próprios caminhos, nos leva ao trato de objetos como os mapas, ou, pra dizer mais bonito, as cartas geográficas. “A cartografia é a arte de compor cartas geográficas”, vi dia desses num mini-dicionário da vida. Essas cartas de geografia foram, por muito tempo, o resultado de apuro técnico e artístico, de trabalhos individuais de criação que se utilizavam de artes como a ilustração e a pintura, ambas formatadas por um rigor matemático na sua estruturação. Ao longo do desenvolvimento tecnológico, os mapas foram se tornando instrumentos técnico e científicos, de produção serial, mecânica e, atualmente, eletrônica.
Por sua vez, o mini-dicionário diz que a narrativa é o modo da narração, a coisa que é narrada enquanto exponho verbalmente um ou mais fatos. Penso eu que, em comum com as cartas geográficas, as narrativas indicam, de sua própria forma, também percursos andados, mas em formato de histórias. E talvez por isso, eu misture de forma tão imbricada as duas ideias no meu juízo.
Percebo que um mapa se baseia em dois conceitos: compreensão e projeção. Compreensão do lugar em que estamos (localização espacial) e projeção do lugar aonde pretendemos chegar (planejamento do percurso). Podemos entender bem essa ideia, se nos imaginarmos fazendo uso daquela que é uma das nossas principais referências contemporâneas de mapa (para não dizer logo de entrada que é a “maior do mundo em linha reta”): o Google Maps. Quando consulto o Google Maps, ele, entre tantas funcionalidades, me dá a opção de procurar um caminho que me leve a um determinado destino. Em A está o “meu local”, o ponto de partida em que me localizo (suposta ou realmente); em B, o meu ponto de chegada, o destino, o ponto em que me projeto.
Misturando as duas ideias de forma ainda simplista, fico pensando que a narrativa é, em si, uma forma mesmo de mapa, um guia criado por um autor/tradição para nos orientar em uma história que só será compreendida se seguirmos seu caminho com nossos próprios passos. Pelo dicionário, uma narrativa é o resultado do ato de contar uma história e pode, a princípio, ser verbal ou escrita. Mas podemos – e acho que devemos – expandir essa ideia tão hermética e nos remeter às narrativas visuais e à fotografia como espaço para esse tipo de exposição.
Pergunto: a fotografia tem capacidade narrativa? Creio que o fotojornalismo já tensiona suficientemente esta questão e nos faz pensar: uma foto, por si só, é capaz de narrar um fato?
A pergunta aqui é feita por quem entende a fotografia como um espaço de apresentação (não confundir com representação). Pensando assim, nas ideias que a fotografia nos apresenta, me questiono: qual o espaço que ela oferece para a contação de histórias, ficcionais ou verídicas?
Tem me intrigado muito essa relação que a fotografia estabelece com a narrativa e o desenvolvimento dessas histórias documentais ou de ficção. Entendam que a ideia não é pensar se fotografia é documento ou outra coisa, porque, por mais que esse debate não seja superado nunca, ainda acho que é uma discussão que perdeu sua importância no contexto atual. Mas proponho pensarmos a fotografia como espaço de histórias.
Acredito que o relacionamento existente entre a fotografia e os conceitos de mapa e narrativa tem se tornado base do desenvolvimento de alguns trabalhos recentes com os quais tenho tudo convívio.
Parto do projeto “Las cosas por su nombre”, de Leo Caobelli, mas me identifico, nessas inquietações com outros trabalhos, como o Tcharafna, de Gui Mohallem, o Aüslander, de Pri Buhr, e o “Moscouzinho”, de Gilvan Barreto.
Estes projetos são narrativas visuais motivadas pela compreensão e reconstrução de passados específicos da vida dos autores ou de contextos relacionados, de alguma forma, a eles. Essas narrativas visuais foram desenvolvidas de forma poética, livre e, algumas vezes ficcional, mas têm como base passados da vida de cada artista, ou encontros com materiais e registros de outros passados.
Em Las cosas por su nombre, o fotógrafo Leo Caobelli revisita um álbum de imagens encontrado na feira de antiguidades da Tristán Narvaja, em Montevidéo, e transforma o objeto em guia para o desenvolvimento de um novo projeto, quase 40 anos depois das histórias que guiaram o primeiro álbum que pertencia ao uruguaio Rodolfo Castellano. Rodolfo, ao longo de alguns anos de sua vida, fez o caminho de Montevideo ao Rio de Janeiro, registrando o percurso numa espécie de diário de viagens. O contato com este álbum foi a base para que Leo refizesse a viagem de Castellano, buscando reconstruir suas lembranças e desenhar, nesses novos trajetos, suas próprias memórias. Ele disse, no Dobras Visuais, “Buscava em Rodolfo minhas relações familiares, assim como buscava o pertencimento no arquivo do outro, nos espelhismos, nas repetições de gestos, nos tempos que se sobrepõe”. E completou “As imagens e os textos tinham o mesmo peso e relevância. Quis fotografar os espaços em que uma aparição fosse possível, mas que nunca acontecesse. As palavras fotografaram melhor”.
Essa coisa de “as palavras fotografaram melhor” é que é de matar. Por identificação mesmo, com Rodolfo Castellano e as cosas por su nombre, com esses movimentos de esforço da fotografia na contação de histórias entrecortadas.
O resultado do projeto foi a produção de uma caixa de memórias, rica em referências ao álbum de Castellano. O que vemos na caixa é a cartografia do encontro entre os dois personagens reais e as ficções que se interpuseram entre eles. O álbum de Rodolfo sendo o mapa dos caminhos percorridos pelas narrativas de Leo.
O passado de outro personagem também foi referência de Pri Buhr no desenvolvimento do projeto Aüslander. A história do avô alemão, que ela foi buscar nesse espaço geográfico distante, e que revelou antes de qualquer coisa, uma arquitetura muito mais emocional do que espacial.
O resultado tomou corpo de imagens que não são meros registros fotográficos do que foi encontrado, mas construções de um passado-presente que transcende os conceitos de álbum fotográfico, memória e ficção e receberam na relação que ela estabelece no futuro. Transcende não, atravessa, refaz, dilata como quem consegue tocar um tecido do tempo. As memórias, as histórias, a força discursiva da presença do avô nas histórias de família são o mapa da narrativa construída pela fotógrafa no projeto que foi buscar na Alemanha e encontrou ecos importantes aqui mesmo, no Brasil.
O que estimula a nossa reflexão aqui, nos dois trabalhos, é a construção narrativa que ambos impulsionam. A construção das narrativas dos autores, e a construção de narrativas de quem interage com essas obras. Os resultados, apesar de baseados em histórias reais, estão atrelados a essas histórias formatadas a mão por cada autor, pelo traçado que eles marcam nesses mapas visuais que vão construindo. Essas construções superam a preocupação com a verdade e me fazem me perguntar: o que dentro desse corpo de análise é um desenvolvimento de uma linguagem de ficções fotográficas, poéticas, a compreensão da fotografia como narrativa visual de nós mesmos, fragmentária como nossa memória, nossas lembranças e nossos esquecimentos?
Uma aluna minha, em uma aula em que estudamos o Aüslander, disse, diante da foto acima, que tinha a impressão de que as imagens continuavam. “Consigo ver o que vai acontecer depois nessa foto, o carro passando, a luz entrando em foco”, era como se a fotografia e outras fotografias do mesmo ensaio continuassem, tivessem uma história que segue, deixando de ser “fragmento”.
Em outra turma, a ideia de cartografia, mapas e narrativas se transformou em um projeto que começa a ser desenvolvido neste segundo semestre, em parceria entre as disciplinas de “Educação para leitura de mídia” e “Língua Portuguesa”. O objetivo é, através da produção de um mapa visual da história dos alunos do 9º na escola, compreender o lugar que eles ocupam na escola, mas principalmente o lugar que a escola ocupa nas biografias individuais dos estudantes, estimulando um processo de autoconhecimento bem oportuno em um período de conclusão como o vivido pela turma.
Para isso, o projeto propõe a construção poética de um mapa visual com imagens, ilustrações, documentos, objetos, e outros produtos que possam retomar, de forma orgânica e poética, os caminhos dos estudantes na escola, destacando aspectos que foram fundamentais para a formação da personalidade de cada um deles. Estamos em um momento bem inicial, mas caminhando por narrativas que partem de tantas outras pré-existentes, como a de Leo, a de Pri, a de Gui Mohallem, na busca de um encontro com uma narrativa própria. E o processo, mais do que o resultado, é o ponto que buscamos. O resultado final é quase o prêmio de chegada para o caminhante dedicado, que já foi recompensado pela viagem.
“-Você viaja para reviver o seu passado? – era, a esta altura a pergunta do Khan, que também podia ser formulada da seguinte maneira: – Você viaja para reencontrar seu futuro?
E a resposta de Marco:
– Os outros lugares são espelhos em negativo. O viajante reconhece o pouco que é seu descobrindo o muito que não teve e o que não terá”
Italo Calvino, em “As cidades invisíveis” [trecho destacado na monografia de Caobelli]
O entendimento dessa capacidade narrativa da fotografia, o alargamento de suas fronteiras, suas tradições, é um caminho de autoconhecimento, individual para cada sujeito envolvido nesses projetos, mas também uma espécie de autoconhecimento da linguagem, que se adapta, readapta, convivendo com novas tensões. A narrativa, suas verdades e ficções, são muito caras, preciosas mesmo à literatura. À fotografia, ela surge como um caminho, que não é recente, mas que tem sido belamente repensado.