Quando comecei a pensar um projeto de pesquisa, uma das primeiras questões que precisei responder foi sobre a pertinência do debate que eu estava propondo. Fiquei tempos pensando se tinha algum cabimento esse interesse em pesquisar fotografia porque, para justificar uma pesquisa, é preciso responder a um certo critério de ineditismo que parecia bem mais claro em outros objetos – como redes sociais, transmídia, cinema 3D, etc. Não que não houvesse mais nada a se falar, mas minha angústia era como ser pioneira quando parece que Sontag, Fabris, Flusser e tantos outros já tinham dito tudo. Minha pergunta era: por que fotografia e não outra coisa?
Muito tempo seguiu sem que eu soubesse responder, inclusive alguns meses de mestrado – parece que a gente cria uma justificativa que serve muito mais para convencer a gente mesmo de que sabe o que está fazendo. Mas a insegurança continuava lá. Até que o nó foi desfeito (ou pelo menos afrouxado) por outra pessoa. Porque não é à toa que alguém vira professor. E isso percebi em poucos instantes de apresentação aos professores do programa de pós-graduação em comunicação da UFPE, entre eles, Nina Veslaco, que, atenta ao meu esforço de justificativa, deu uma opinião que me marcou:
“tenho a impressão de que a fotografia é a imagem técnica que mais se adaptou às transformações impostas à nossa cultura nos últimos anos”.
E pronto.
Não sei em que medida a fotografia foi, realmente, a imagem técnica que mais se adaptou. Não acho que dá pra medir isso. Mas descobri que é essa capacidade de adaptação que me cativa. Apesar do cinema, apesar da Internet, das redes sociais, das estratégias transmídia, essa velhinha de 200 anos continua se adaptando e provocando, intrigando e, em alguns momentos, nos passando a perna mesmo.
A fotografia não ficou à margem do processo de adaptação da nossa cultura para formas de produção, expressão e difusão mediadas pelo computador – a “revolução digital”. O formato digital modificou as imagens e nos fez modificar nosso relacionamento com o visual.
Porque a grande novidade da produção imagética da era digital não é a própria produção, os novos temas, os novos instrumentos utilizados na criação de imagens, as novas formas de publicação, os novos meios de divulgação, mas sim, isso tudo numa plataforma só: o computador. No computador, a imagem se corporifica como código numérico, digitalizando-se e convivendo com diversos formatos que solicitam um jeito diferente de apreciá-la.
É o computador proporciona uma nova forma de interação entre o homem e a imagem, mais pautada na união das potencialidades dos dois do que no simples uso da máquina como instrumento de visão ou na simples subordinação do homem à tela.
Segundo Fred Ritchin, autor do livro “After Photography”, usamos termos da natureza (ou mesmo um ponto de vista moldado por ela) para descrever um ambiente que não tem cheiro, gosto, e em que o tato é reduzido ao clique e à digitação e a visão é continuamente emoldurada por outro retângulo. E mesmo diante de uma plataforma tão insípida, inodora, de tato e visão teoricamente limitados, somos capazes de vivenciar as mais diversas experiências – sociais, políticas, estéticas, etc.
O simples ato de observar mudou de forma radical nesse espaço digital. O contato com imagens eletrônicas é apenas mais um dos aspectos com que temos de lidar enquanto navegamos na rede, dividindo nossa atenção entre caixas de email, bates-papos, redes sociais e postagens como essa.
Essa forma de lidar com as novas mídias foi nomeada pela escritora Linda Stone como um estado de “atenção continuamente parcial” (continuous partial attention). Durante muito tempo fomos condicionados a contemplar uma imagem com concentração e aprofundamento (em museus, galerias, lendo livros impressos, etc). Com o surgimento das imagens técnicas e principalmente, da imagem em movimento, nosso aparelho perceptivo se condicionou a receber mensagens através de distração – porque é tão imenso o fluxo de informação que se tornou impossível contemplar toda e qualquer imagem com a qual nossos olhos têm contato.
A fotografia digital oferece ao nosso aparelho perceptivo uma enxurrada de imagens, numa produção superabundante e muitas vezes superficial que corre o risco de sobrecarregar nossos sentidos. Ter consciência desse processo só ajuda a estimularmos uma produção e um consumo de imagens mais responsável e cheio de novas potencialidades.
Pelo computador entramos em contato com uma nova forma de conteúdo: o hipertexto, que oferece ao leitor links que citam, explicam, aprofundam o tema, e permitem os mais diversos tipos de derivações. Com o hipertexto, “a fotografia não é apenas um objeto tangível, um retângulo relembrando uma pintura, mas sim uma imagem efêmera feita de ladrilhos”, disse Ritchin.
Segundo ele, a fotografia no ambiente digital é wired, instantânea, maleável, automática, faz parte de uma imensa multimídia, capaz de influenciar e mudar toda nossa produção imagética.
Estar em contato com essa imagem não é mais, como era há menos de meio século, ter essa imagem nas mãos, sentir com os dedos sua materialização. No ambiente digital, a imagem é uma tela composta de milhões de pixels, prontos para se comportar como portas que expandem nossa visão.
Em acordo com a difusão do hipertexto, Ritchin defende a prática de uma hiperfotografia – uma fotografia dinâmica, linkada, que poderia abrir e ampliar a imagem, permitindo a ela um papel mais vibrante.
A hiperfotografia permite ao espectador mais do que simplesmente a assimilação de uma mensagem visual, ela incentiva a participação dele, exigindo e produzindo uma nova forma de ver: ver-clicando, ver-aprofundando, ver os caminhos diferentes possibilitados pela mesma imagem.
Diante da foto digital, o leitor pode desenvolver uma série de operações que o transformam em ator do processo, alguém que pode escolher entre pular uma imagem, parar numa imagem, observar atentamente, ver superficialmente, ampliar, reduzir, minimizá-la, maximizá-la, salvá-la e tantas outras operações.
A visualização passa, portanto, a ser uma ação ativa, dependente quase exclusivamente da decisão do espectador. Se numa galeria ou um museu, o espectador precisava se adequar às regras do comportamento social para usufruir de uma obra. Na Internet, é ele quem dita grande parte das regras com a qual convive.
Guiados pelo mouse, tateando o teclado, fazemos da visão um sentido mais amplificado, ou amplamente conjugado à necessidade do toque. É dessa forma que as imagens digitais abrem espaço para uma espécie de expansão da nossa visão, e até nos exigem isso ao estimular novas formas de navegar sobre elas.
No contexto da mídia digital, o espectador, leitor, o usuário de Internet passa a tomar parte do processo e dividir a responsabilidade sobre o conteúdo que acessa junto do autor, passa, então, a desempenhar o papel de colaborador, co-autor.
“Ao contrário da fotografia analógica, em que o espectador é persuadido a nunca tocar o seu centro pra não deixar marcas, o leitor é convidado a entrar no interior da imagem digital”, disse Ritchin.
Ou pelo menos deveria. A realidade é que, apesar da produção e difusão massiva de fotografias com a digitalização, ainda temos pouco domínio das possibilidades de discursos que surgem com os formatos emergentes.
É importante que o fotógrafo, como um produtor, seja mais sensível a essas potencialidades, para que possa explorá-las e, portanto, tirar o melhor uso delas. Fotografar é importante, mas saber tirar o máximo dessa fotografia pode tornar a imagem ainda mais eficaz.
Repensar a forma é também um modo de dominar o conteúdo, afinal, os percursos futuros da nossa cultura podem ainda não estarem traçados, mas, certamente, surgirão a partir do que vivemos hoje.
* Esse texto possui trechos de um artigo produzido para a conclusão da cadeira “Cultura da convergência e meios visuais”, ministrada por José Afonso Jr., no ppgcom da UFPE, como parte do mestrado orientado por Maria do Carmo Nino.