Podia ficar lembrando pra sempre da fotografia que passa recibo

No livro “Forget Me Not: Photography and Remembrance“, Geoffrey Batchen fala sobre algo que ele chama de “fotografias-esculturas”, objetos comuns no século XIX que, além da imagem, traziam outros materiais capazes de adicionar sensações bem diversas à interação com suas fotografias – eram pedaços de tecidos, mechas de cabelos, restos de algum objeto pessoal, qualquer coisa que fosse capaz de remeter o olhar de quem observa a lembrar mais ativamente as pessoas e momentos retratados.

Nessas fotografias, era comum ver, além do retrato, pequenas anotações dos donos das imagens, seja para identificar os personagens, corrigir identificações, ou fazer alguma dedicatória. A fotografia era um objeto que devia ser manuseado. “Algumas vezes, essa escrita simplesmente fornece à fotografia uma citação que a identifique (“Eu”) ou uma data. Em outras ocasiões, esse ato permite quem escreve de adicionar humor ou sentimento a uma imagem ordinária, ao colocar palavras na boca do sujeito da foto ou através da pura pungência das palavras (“Enfim”, por exemplo) […] a capacidade do objeto de provocar rememoração por si só dá a essas fotografias substância e textura, tornando-as tocáveis e quentes, e permitindo passado e presente a coabitar na vida doméstica do dia-a-dia“. As fotografias eram objetos de fazer lembrar. E, em muitos aspectos, continuam sendo.

Dentre tantas rotinas e hábitos que fizeram da fotografia um objeto de memória, lembrança, a questão que me desperta aqui é, na verdade, a fotografia como objeto de esquecimento, as práticas e manuseios que fizeram destas imagens também objetos de reforço de uma vontade de esquecer, das tentativas desesperadas de apagar o passado em todo e qualquer registro.

Foto: Laura Makabresku

Foto: Laura Makabresku

Penso nisso quando vejo essa imagem de Laura Makabresku. Laura nasceu em 1987; e vive na Cracóvia, uma cidade da Polônia. Na sua biografia resumida, diz que é fotógrafa e artista visual, ou vice-versa. Suas fotografias são “transbordadas por símbolos místicos e a atmosfera dos contos de fada”. Descobri suas fotos por andanças no flickr.

Na legenda da foto, publicada na rede social, a frase “Para esta escuridão que nos pega como o fogo”. Um homem e uma mulher se abraçam, em preto e branco. E em oposição, o fotograma de uma planta – o contraste desse branco no preto, da planta pousada no meio do quadro, impedindo que sua sombra fosse queimada pela luz que rasga o papel fotográfico.

O homem do quadro esquerdo da foto está vestido. Um paletó preto o cobre quase  transformando-o na paisagem ao redor. Semi camuflado, ele abraça a mulher no centro do seu corpo, uma mulher nua, pele branca, cabelos emaranhados como a personalidade de tanta gente. Às vezes a abraça, às vezes a prende, porque é mínimo o limite entre um e outro. Eu acho que a sufoca, mas isso é certa propensão de quem analisa. Talvez seja proteção, vai saber.

Mas o que intriga, o que domina mesmo o meu juízo é o rosto do homem, riscado, censurado da fotografia. O rosto da mulher também está oculto, mas quase como um acontecido: calhou que na hora da imagem, ela estivesse nua, calhou que estivesse de costas.
Mas o rosto do homem, não. É um rosto apagado, vetado, tolhido. Um rosto rasurado. 

Não sei se existe ato mais simbólico fotograficamente do que a rasura. Rasgar uma fotografia é destruir o objeto, desfazer-se da lembrança. Rasurar uma pessoa numa imagem é quase como destruir a pessoa, sua própria presença, se desfazer do indivíduo e sua influência no nosso dia a dia, apagar unicamente a pessoa do nosso passado, mas preservar o passado – como se fosse possível que o que se viveu pudesse ter sido vivido sendo como não foi (se é que você me entende). E é nesse ponto que a fotografia se transforma em boneco de vodu, alegoria que se materializa (assim se espera) numa conexão direta com o corpo alheio.

Daí me lembro de um conhecido que, num ato de desespero, vendo-se abandonado pela ex-namorada, riscou o rosto da moça nas fotos do Orkut (sic). E me intrigou bastante aquela atitude porque, possivelmente, não satisfeito em ter rasgado/riscado a imagem da moça nas fotos e referências que deveria ter pelos cantos do quarto, ele foi lá e riscou as fotos do Orkut. Percebam o quanto custou ao rapaz, riscar as imagens no Paint (sic) e depois refazer cada upload de modo a expor ao mundo todo sua indignação. Protesto mais sincero que muito grito contra a corrupção que vi nos últimos meses, e mais original também. Se a originalidade trouxesse a amada de volta em três dias…

Fiquei pensando nisso durante anos, e hoje vejo a foto de Laura Makabresku e me lembro da indignação em orkut-e-paintbrush daquele rapaz que, lá pelos idos de dois mil e tanto, não se conformou em rasgar as fotos sozinho, na intimidade da sua dor de abandono, e fez questão de declarar o fim simbólico pelas fotografias das suas redes sociais.

Discutimos isso uma vez, pensando nas fotografias de Instagram. E fiquei na pergunta: se o Instagram é uma timeline atualizada cronologicamente pelas imagens da nossa vida (autoral, profissional, pessoal, ou apenas gastronômica mesmo), para onde vão as imagens que deletamos quando aquela presença na nossa linha de tempo não nos faz mais sentido?

Vejam que a pergunta aqui fica complexa no momento em que analisamos o apagamento e a sua relação com a temporalidade. Sites como o Memolane estavam aí, nos lembrando das coisas de anos atrás que não tinham mais lógica de existência no presente mas estavam lá, escritas na nossa linha de tempo social.

O pesquisador Viktor Mayer-Schöenberger, autor de Delete -The Virtue of Forgetting in the Digital Age” (delete, a virtude de esquecer na era digital), pensa muito sobre nossa atual dificuldade de superação pelo esquecimento no ambiente digital – repleto de um arquivamento infinito. Em entrevista à Folha de S. Paulo, ele disse: “Durante toda a história da humanidade, o esquecimento tem sido fácil para nós. Ele é construído em nosso cérebro: a maior parte do que nós experimentamos, pensamos e sentimos é esquecida rapidamente. E (principalmente) com uma boa razão: essas coisas não são mais relevantes para nós, e esquecer limpa a mente. Esquecer nos ajuda a abstrair e a generalizar, a ver a floresta em vez das árvores, e a viver e agir no presente, em vez de ficar amarrado a um passado cada vez mais detalhado. Esquecer nos ajuda a evoluir, a crescer, a seguir em frente -para aprender novas coisas. Pelo esquecimento, a nossa mente se alinha com o nosso passado, com nossas preferências do presente, tornando mais fácil a sobrevivência e a vida suportável. Pelo esquecimento, também facilitamos a nossa capacidade de perdoar os outros por seus comportamentos. O que é verdadeiro para indivíduos também é verdadeiro para a sociedade em um aspecto mais amplo. As sociedades devem ter a capacidade de perdoar indivíduos esquecendo o que eles fizeram, reconhecendo, deste modo, que os seres humanos têm a capacidade de mudar e de crescer“.

Por outro lado, lembro que Ronaldo Lemos disse dia desses que o Instagramcomo se sabe, é uma espécie de ‘coluna social’ personalizada da internet. É onde boa parte dos usuários posta fotos das suas férias, viagens, restaurantes, baladas e ‘looks do dia‘”. Ao contrário das colunas sociais dos jornais impressos (tão efêmeras que já são velhas no momento mesmo em que abrimos os jornais), a coluna social do Instagram está ali, no perfil da pessoa, ao simples deslizar dos dedos.

Daí fico pensando nas presenças que nós, fotógrafos e estudiosos da fotografia temos nas nossas redes sociais. Tudo o que publicamos faz sentido para nós no momento em que o enter é dado – ou quase tudo, pelo menos. As imagens são, mais do que qualquer coisa, o retrato das pessoas que somos, do nosso olhar, do momento subjetivo que vivemos. Apagar do Instagram ou do Facebook uma presença, um momento visual, não só não apaga (obviamente) aquela existência na nossa temporalidade, como transgride a própria noção de timeline, sua base montada no tempo, cronológico, retrospectivo. A consciência disso mudaria nossa relação com nossos rastros digitais?

A foto de Laura Makabresku, sobre a escuridão que nos toma como um fogo, mostra um homem rasurado que prende uma mulher não identificada. Como a planta no quadro direito e sua sombra branca que não foi queimada pela luz, , a mulher ainda não foi dominada pela escuridão. Mas os traços, o rastro, a cinza do homem ao seu redor jamais serão apagados, esquecidos. A fotografia é como pele queimada que segue, não importando as tentativas de regeneração. Nas timelines, não se pode mais rasurar o momento maculado. Mas muitas vezes não superamos a vontade de esquecer. Nesses nossos novos usos cotidianos da fotografia nos espaços digitais, diferentes noções sensoriais de trato com a imagem surgem, mas alguns hábitos e sedes permanecem.

Sobre joanafpires

recife, 27, 60, 170, 35, 40
Esse post foi publicado em Olhando pra sempre e marcado , , , , , , , , . Guardar link permanente.

Deixe um comentário