Certo dia, fui apresentada ao trabalho da artista plástica francesa Orlan, conhecida por fazer “de seu próprio corpo uma construção aberrante“. O trabalho de Orlan é, sem dúvida e no mínimo, perturbador – ela tenta remodelar o próprio corpo como obra de arte, chegando a apresentá-lo em performances executadas em bloco cirúrgico. As intervenções que ela faz em si mesma são extremamente agressivas e questionam nosso interesse em localizar o corpo humano entre o que é belo e o que é monstruoso. Mas de todo o incômodo que sua obra produziu em mim, uma ideia me afetou mais: para Orlan, entender que o corpo de uma pessoa pertence a ela é chegar à compreensão extrema do sentido de liberdade.
É livre quem é senhor do próprio corpo e alcançar essa liberdade não é coisa simples. Lembrei disso semana passada quando dei de cara com o Nude Photo Revolutionaries Calendar produzido, em março deste ano, pela artista Maryam Namazie em apoio à estudante egípcia Aliaa Magda Elmahdy que, no ano passado, causou bastante indignação no seu país natal por publicar alguns autorretratos nus em seu blog. As fotos tinham o objetivo de contestar “uma sociedade de violência, racismo, sexismo, assédio sexual e hipocrisia”, e renderam à estudante algumas ameaças de morte, além de um processo judicial que poderia condená-la a receber chibatadas em praça pública ou à pena de morte.
Por mais distante que as chibatadas e a pena de morte por posar nua possam estar da nossa cultura, acho que o debate sobre o corpo e a nudez feminina se torna indispensável numa sociedade como a brasileira, que vive a falsa promessa de uma liberdade sexual mas em que o nu, principalmente o feminino, só é bem aceito quando se adéqua a alguns formatos autorizados.
Orlan diz: “(…) sempre considerei meu corpo de mulher, meu corpo de mulher artista, como o material privilegiado para a construção do meu trabalho. Meu trabalho questionou sempre o status do corpo feminino, via as pressões sociais, seja no presente ou no passado, onde apontei algumas de suas inscrições na história da arte”.
Essas pressões sociais tentam (e conseguem!) moldar o corpo feminino e a forma como ele tem sido veiculado pela mídia, pela arte, e dentro desses espaços, pela fotografia. O corpo feminino sempre foi um dos principais objetos de estudo na história da arte mas as polêmicas e pudores em torno dele permanecem fortes, mantendo a consciência sobre o corpo como um tabu.
Karina Buhr, Naná Rizzini, Mariah Teixeira, Marina Gasolina e Adriano Cintra, recentemente, levantaram suas vozes para contestar isso e abriram seus peitos nus dentro da ação Sexo Ágil, que entra em confronto, também através das fotografias de Marcos Vilas Boas, com o machismo e a misoginia da sociedade brasileira. “O Brasil é um país muito machista (os homens e as mulheres), que tem um discurso lindo a respeito da burca alheia, mas não olha pro próprio pé“, disse Karina à TPM. E quando lembro de alguns episódios históricos ou recentes, é que penso mesmo que as mulheres brasileiras não se distanciam tanto assim da realidade da burca ou das chibatadas do médio oriente. Porque há apenas 50 anos, as fotos de Joel Maia com uma Leila Diniz grávida e de biquine na praia chocavam a sociedade, e Leila, por sua liberdade sexual e seu comportamento indiferente a alguns pudores, foi banida de muitos círculos de artistas no Rio de Janeiro.
No Brasil, a liberdade feminina é confundida com uma cultura de culto ao corpo da mulher, facilmente exibido mas fortemente criticado. Ações como o Sexo Ágil e o Nude Calendar comentam a questão do nu feminino autorizado. “Quando uma ferramenta de opressão pode ser transformada em uma afirmação de poder é uma coisa linda. A nudez quando celebrada não prejudica ninguém, mas quando é tornada vergonhosa e bárbara machuca a todos“, comenta Mallorie Nasrallah sobre a ironia fina de usar um calendário de nus como uma ferramenta de declaração de liberdade – as oficinas dos anos 90 se “reviram na própria tumba”. Ironia que está presente em diversas das assertivas do projeto Sexo Ágil: “dia internacional é a cabeça do meu pau” ou “tem vergonha de farol aceso na rua”. Elas metem o dedo na (nossa) ferida.
Uma das questões mais fundamentais nessa polêmica toda é que a imagem do nu feminino carrega uma grande expectativa de beleza, como se essa nudez só fosse bem aceita quando tem o objetivo de provocar alguma espécie de fruição, de desejo e gozo. Causaria certo incômodo a mulher nua (ou semi-nua como Leila) não por ser bonita mas apenas por vontade própria, não para ser desejável mas apenas por ser real, ser possível.
Penso aqui na grande contradição das feministas protestando sem camisa pelo mundo afora, mas sendo lidas como simples “gostosinhas sem camisa” pelo mundo a dentro. E essa graça, que muitos homens fazem, é uma das formas mais comuns de tentar “enquadrar” a nudez feminina, de lidar com a insegurança de se confrontar com uma mulher que está nua por si só, completamente indiferente ao interesse que outros podem sentir por ela.
No La Lettre, Sara Rosen disse que “em uma cultura em que a repressão se disfarça como modéstia, em que as mulheres são definidas pela ausência de sua individualidade, em que a sexualidade é o direito do homem e o erro da mulher, o auto-retrato nu é um ato político”. Ela estava falando de forma generalizada das sociedades orientais como as de Aliaa, mas não vejo nenhuma razão para que essa afirmação não seja lida com muito peso também nas sociedades ocidentais em que o nu feminino deixou de ser visto como ato político para ser explorado economicamente em larga escala. “No século XXI, no Ocidente, o nu se tornou uma indústria global. A linha tênue entre mercantilização e auto-exploração é facilmente borrada em uma cultura onde o dinheiro é a recompensa final”, Sara completa.
Ocultar o corpo nu, cobri-lo, é uma prática vista como uma forma de valorização, de modéstia que, em contraposição ao narcismo e à vaidade, mostraria a pureza de quem se esconde. Talvez por isso, no Brasil, homens e mulheres condenam e julgam tanto as mulheres de shorts curtos, vestidos justos, barrigas de fora, as mulheres que decidem elas mesmas explorar o desejo sexual que seus corpos provocam – vide a polêmica das “piriguetes”.
É essa indiferença, a falta de vergonha do próprio corpo e o consequente auto-conhecimento que ela provoca que choca uma sociedade que só começou a lidar com a mulher como sujeito há tão pouco tempo. Aliaa disse à CNN: eu não me sinto tímida de ser mulher numa sociedade onde as mulheres nada mais são que objetos sexuais assediados diariamente por homens que não sabem nada sobre o sexo ou sobre a importância de uma mulher. A foto é uma expressão do meu ser e eu vejo o corpo humano como a melhor representação artística disso.
Mostrar o corpo feminino por sua natureza humana tem sido o desafio de muitas imagens. Mostrar o corpo feminino como a representação de um ser, mais do que um objeto de desejo sexual tem sido uma luta que algumas fotografias buscaram travar. Como afirma a escritora estadunidense Greta Christina no Nude Calendar “Eu possuo o meu corpo. Não – rebata isso. Eu sou o meu corpo“.
Possuir não é mais suficiente, é preciso ser.
Oi Joana, importante o seu Diálogo. Recentemente revi um filme que gosto bastante chamado Bagda Café. No filme uma personagem vai se despindo aos poucos aos olhos de um pintor. Jasmim já é uma senhora, está completamente fora dos padrões sociais que ditam (ou ao menos tentam) o que é uma mulher e o que é uma mulher bonita. E uma mulher bonita recebe a permissão da nudez. No entanto as questões em relação a beleza já mudaram tanto, não? E em relação a nudez também. Estas fotos de uma maneira ou outra nos servem enquanto questionamento a respeito do nosso olhar sobre o nú feminino. Especialmente, ao meu ver, quando os corpos negros são fotografados, confesso que sinto falta dessa diversidade que somos nós em algumas propostas artísticas. Que associação fazemos entre nudez, beleza e liberdade? Mostram-se os peitos e a liberdade nem sempre segue como acompanhante, a liberdade é uma conquista diária e sem fim. Atentar para uma classificação, um julgamento, de uma imagem tão natural e comum como uma fotografia de uma mulher sem roupas, já é um bom começo. Sobre a Orlan é uma grande artista. E a obra dela é valiosa em si independente das sensações e/ou questionamentos provocados. Rasga fundo as entranhas num despudor, numa “deseducação” ancestral. Ela transcende questões de gênero com originalidade.
O corpo é um pertencimento até o último momento.
Vivi, muito importante tudo o que você disse, e essa fala “Mostram-se os peitos e a liberdade nem sempre segue como acompanhante” faz um bom resumo de tudo. O que percebo é que todas essas questões têm mudado muito: o conceito de beleza, o feminino, a liberdade, a individualidade da mulher, o feminismo, tudo. Mas ao mesmo tempo me parece que nada mudou tanto assim. Escrevi o texto na esperança de chamar a atenção para esse contexto que nós vivemos, qualquer eco em direção a isso que o texto venha incentivar já é um resultado importante para mim. Discursar também é colocar-se de peito aberto 🙂
Ótimo texto, gostei da abordagem pelo aspecto do nu não só pela beleza, mas pelo que contém de liberdade inclusive para revelar o “feio”. Afinal, nada mais humano do que o nu!
Um abço.
muito obrigada, célia! foi bem esse aspecto da humanidade que eu tentei destacar mesmo.
Nao sou muito culto nao , mas gosto do nu Artistico ,, Tem foto melhor que o corpo nu de uma mulher.. perfeita ..
é bonito mesmo, mas não só isso.
Lembrei-me imediatamente do trabalho de Fernanda Magalhães, artista plástica que utiliza em seu trabalho a representação da mulher gorda nua na fotografia.
Vale conferir uma entrevista com ela aqui: http://www.jornaldelondrina.com.br/1-em-500-mil/index.phtml?idmilhao=8
Xu, boa dica! Fernanda esteve aqui na Semana de Fotografia e o trabalho dela também me tocou muito. Até pensei em citá-la no texto inicialmente porque o que ela discute se encaixa muito na nossa discussão, mas acabei caminhando por um outro lado. Boa lembrança! :*
Estou aqui refletindo
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