Diário de Bordo – Foto em Pauta 2012 – Fotografia e Inquietação

Por Suelen Pessoa

Eu não sou uma pessoa que gosta do fotojornalismo, nunca foi o tipo de imagem que me tocou, principalmente as reportagens de guerra. Ou pelo menos era assim até eu visitar a exposição Lybia Hurra do Maurício Lima durante o festival. Eu fiquei tão, tão tocada, tão emocionada com o que eu vi, com a força e delicadeza das imagens que passei o dia todo naquela fragilidade de não conseguir ver ou ouvir mais nada sem ter vontade de chorar. Pouquíssimas vezes eu tive esse tipo de experiência estética. Por isso, eu ia ter que conseguir entrar na palestra dele de qualquer jeito, para ouvi-lo falar sobre como aquilo tudo foi feito.

Exposição Mauricio Lima | Pedro Leone/Tino Cultural

A exposição é composta de 14 imagens dos momentos finais das batalhas em Sirte, dois dias antes dos rebeldes capturarem e matarem o ditador Muamar Kadafi. As fotografias mostram muito mais do que o contexto do levante civil, muito mais do que os fatos históricos e jornalísticos. O Maurício é um fotojornalista independente, que trabalha como freelancer para o The New York Times e vários outros veículos. Foi considerado pela Time o fotógrafo de agência internacional de notícias do ano de 2010, mas acima de tudo isso está o motivo pelo qual ele fotografa: para ajudar pessoas.

O Maurício Lima é dessas pessoas que transcendem a humanidade, eu acho. Um verdadeiro herói em seus propósitos. Não preciso nem dizer que virei fã dele, pois já está bastante explícito. A palestra dele começou meio travada, pois ele estava muito nervoso. Ele ficou desconcertado e incomodado com a leitura da sua biografia, cheia de prêmios, menções honrosas, exposições e convites para fotografar os conflitos mais complexos para os veículos mais importantes. A sem-graçeza dele foi linda, porque ele é assim, absolutamente humilde na sua apresentação mas gigantesco no seu objetivo. Vou tentar contar um pouco do que foi.

Mauricio Lima | Rodrigo Lima/Agência Nitro

Ele foi fazer a cobertura da invasão americana no Iraque e conheceu um garotinho que ficou ferido em um bombardeio, perdendo parte da visão dos dois olhos e todo machucado no rosto e corpo por causa dos estilhaços que o atingiram. A família desse garotinho o acolheu em casa, então ele pôde passar vários dias convivendo com essa família, e criou um apreço muito grande por eles. Ele fez uma imagem muito impactante desse garoto (não me recordo o nome dele, apesar do fotógrafo ter falado várias vezes) segurando a única fotografia que ele tinha na vida, que é da matrícula na escola, antes de ser atingido e ter ficado com o rostinho desfigurado.

Essa imagem rodou o mundo e, por causa disso, o garoto conseguiu tratamento para recuperar a córnea machucada. A partir desse momento, em que ele conseguiu efetivamente ajudar alguém através das suas fotografias, ele começou a correr o mundo em busca de conflitos e guerras não somente para reportar o que ele vê acontecendo, mas para se tornar partidário de um lado da história e ajudar essas pessoas a passarem seu recado para o mundo.

Segundo Mauricio, o fotógrafo precisa expor suas idéias, sua opinião, porque não existe um jornalismo imparcial e neutro. É preciso estar de algum lado, e por isso ele prefere ser um fotógrafo independente. Alguém perguntou por que ele é fotógrafo e ele respondeu que é para prestar o serviço de levar uma história de um povo. Seu objetivo altruístico é sempre muito claro, e ele é daquelas pessoas que acredita no verdadeiro espírito do fotojornalismo, de não interferir em nada na cena para conseguir uma imagem melhor.

Menino no Iraque em imagem de Mauricio Lima | Rodrigo Lima/Agência Nitro

Ali na Líbia ele esteve ao lado dos rebeldes. Não somente do lado ideológico dos rebeldes, pois isso o mundo inteiro estava, mas literalmente do lado dos rebeldes. A poucos passos do fogo aberto. E praticamente atirando também, com a câmera. Caminhar junto com os rebeldes, segundo o Maurício, era a coisa mais complicada de todas, pois entender a situação, conhecer o território, manter a tranqüilidade era difícil. Como os ataques eram por emboscada, ele não tinha como se proteger ou se precaver de onde vinha o fogo. Aos poucos ele foi conseguindo se organizar em meio a esse caos e se juntou com mais dois outros fotógrafos destacados para essa cobertura (de outros veículos) para ver se eles conseguiam algum tipo de segurança mútua.

Maurício contou que tinha muito mais medo do “fogo amigo” que o do fogo do inimigo, tamanha era a descoordenação, descontrole e falta de comando e treinamento dos rebeldes. Como era um levante civil, os que portavam aqueles fuzis, lança-chamas, granadas, bombas eram médicos, padeiros, engenheiros, gente comum que provavelmente não sabia nem segurar uma arma direito. Ele passou alguns vídeos que fez logo depois que conseguiu as fotos, mais para mostrar para os parentes e amigos quando voltasse como era o clima na guerra, e compartilhou esses vídeos com a gente.

Nesse momento eu comecei a chorar porque, por mais que a gente imagine como pode ser uma situação dessas, a gente está muuuuuuito longe de vislumbrar essa realidade. Eu não vou ter palavras para descrever os vídeos, mas é mais ou menos assim: todo mundo sentado conversando, ou atrás de um muro tranquilamente conversando e alguns até rindo, todos portando armas gigantescas (alguns filmando com celular) e de repente alguém vai ali na frente, aponta para um lado e descarrega todo um pente de balas em direção ao inimigo (que a gente não vê onde está), mas de forma completamente sem método. Teve uma passagem que tinha um cara andando e outro começou a atirar, quase acertando o amigo com a metralhadora, que se desviou rápido e se safou por muito pouco.

Exposição Maurício Lima | Rodrigo Lima/Agência Nitro

Alguém perguntou o que o motivava a ir para as guerras, voltar e pleitear novas idas. Ele disse que começou registrando com a Primavera Árabe na Tunísia por acreditar que precisava mostrar isso ao mundo por meio de fotos; mas depois dessa história do menino iraquiano que conseguiu o tratamento para os olhos por causa da foto dele, o objetivo da vida dele passou a ser se preocupar também com a vida do outro, não somente a sua. E a fotografia deixou de ser o objetivo para ser a ferramenta. E a imagem é uma linguagem universal, que não precisa de tradução e essas pessoas precisam ser ajudadas a se comunicarem com o mundo que não fala a língua delas e não entende seus propósitos. Como quando ele foi cobrir a situação no Afeganistão logo após o ataque de 11 de setembro e viu que os soldados americanos pagavam as crianças afegãs para trabalharem para eles com o intuito de formar adultos “amigáveis” dos EUA. Então Maurício fotografou essas crianças porque elas pediam e também como forma de contar essa história para elas mesmas no futuro.

Todo mundo saiu bem diferente da palestra e a próxima atividade, com a Claudia Jaguaribe, começou com um comentário da Geórgia Quintas sobre como as palavras e imagens do Maurício Lima tinham sido tocantes para todos, apesar de o assunto ser bem diferente. Com certeza, o maior destaque de todo o festival foi o Maurício Lima.

Alívio e Processo Criativo

A nova mesa seria composta pela Claudia Jaguaribe e o Bob Wolfenson, mas ele não compareceu por ter ficado muito doente. Então ela pôde se estender mais um pouco no assunto da revisita a arquivos de produções guardadas e como os desdobramentos dessa revisita podem render novos trabalhos ou complementos de outros. Confesso que a Claudia Jaguaribe me trouxe uma paz de espírito muito grande, por duas coisas que ela falou sobre o processo criativo dela. A primeira é que nem sempre ela consegue conceber a imagem final antes de executá-la. Muitas vezes, ela tem uma ideia, mas a coisa vai sendo construída enquanto ela está no local e vai observando e montando tudo. Como esse é o meu processo também, eu me senti aliviada, pois todos os fotógrafos que eu admiro muito dizem que concebem e planejam tudo antes e só depois saem para fotografar. Isso me dava um certo desespero por não conseguir; eu preciso de uma certa dose de acaso e de desconhecido para funcionar bem. Não consigo ter esse controle todo.

Claudia Jaguaribe | Rodrigo Lima/Agência Nitro

A outra coisa que ela disse e mostrou é que o corpo de trabalho dela é tão amplo quanto são as coisas visíveis. Ela fotografa de tudo e utiliza variadas linguagens e técnicas, de forma que um trabalho não tem nada a ver com outro e muitas vezes não parece nem que são trabalhos de uma mesma autora. Ela é uma fotógrafa que experimenta muitas coisas, então a cada trabalho é uma inquietação diferente que a move. Até suspirei quando ela disse isso, pois eu me identifico completamente: fotografo de tudo, de formas diferente, usando técnicas diferentes e eu tinha uma certa dificuldade em dar uma identidade a tudo. Mas vi que não é necessário, existe gente muito bacana, como ela, que não possui uma só identidade e que ainda assim é muito interessante.

Como ela fotografa bastante, tem um arquivo gigantesco de imagens diversas, então, revisitar esses arquivos é absolutamente necessário para complementar seu trabalho. Muitas vezes uma imagem mais antiga acaba deslocada do seu primeiro sentido quando colocada junta com uma outra mais recente, e ela vai montando esse quebra-cabeça ao longo dos anos para montar suas séries. O legal do trabalho da Claudia é esse processo, que ela diz que é composto de antes (a cultura fotográfica que ela tem, bagagem que carrega, as imagens que já viu ao longo da vida, como um arquivo mental de imagens), agora (que é o momento que ela está no local da foto, observando e montando os elementos da imagem que quer construir) e depois (uma reflexão sobre o que foi feito e a revisita aos arquivos anteriores). Os processos são muito fluidos. Às vezes ela já sai sabendo o que vai fazer, às vezes ela chega no lugar sem ideias e constrói as coisas na hora… E quando ela se frustra, ela guarda as imagens e as revisita depois.

Claudia Jaguaribe | Rodrigo Lima/Agência Nitro

Um ponto importante que a Geórgia apontou é que o acúmulo de imagens tem que funcionar junto com a edição. Essa é a parte final do processo, e a mais importante. A mídia digital nos dá uma liberdade muito grande e uma quantidade muito grande de arquivos, então é preciso tem um método funcional de revisitação para a coisa funcionar, principalmente para alguém com esse corpo de trabalho tão diverso quanto a Claudia. “O arquivo é onde eu volto, não onde eu começo. Sempre preciso de uma motivação pra sair”, diz Claudia.

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2 respostas para Diário de Bordo – Foto em Pauta 2012 – Fotografia e Inquietação

  1. joanafpires disse:

    Gostei muito desse texto de Suelen porque é engraçado como ela demonstra inquietações tão simples mas tão reais, palpáveis diante dessas fotos de maurício. Eu me sinto assim também, e acabo me lembrando de Francesco Zizola, que esteve no ParatyEmFoco em 2009 e a quem perguntei “você não sente medo?” durante sua palestra. Uma pergunta meio tola porque sempre parece óbvio que eles sentem medo, mas para mim não.
    Acho que muitas pessoas imaginam as guerras como uma espécie de caos organizado onde o fotógrafo, por mais que corresse riscos, estivesse autorizado, de certa forma poupado dos perigos verdadeiros e Maurício fala de uma guerra que não é “bonita” em sua tragicidade, uma guerra que é desespero. Acho que isso acaba nos aproximando um pouco mais do que se passa, nos solidarizando um pouco mais às pessoas, como ele quer.

  2. Suelen Pessoa disse:

    Fiquei muito tempo pensando se essa guerra fosse aqui no Brasil; se por uma razão qualquer precisássemos pegar (novamente) em armas para nos livrar de uma ditadura, se eu também não estaria lá, mesmo que descoordenada, segurando um fuzil.
    O Maurício contou o caso de um cara que ele conheceu lá, um médico, que abandonou a medicina para se juntar aos rebeldes contra o sitema que já havia matado três de seus primos. Na minha cabeça isso é tão, mas tão maior que a fotografia…

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