
Virginia Oldoini (a Condessa de Castiglione), fotografada por Pierre-Louise Pierson (década de 1860)
Dentro do campo da fotografia, sempre me interessaram os retratos. Não que fotos de lugares e coisas não me afetem, mas foto de gente é, para mim, um fenômeno incrivelmente fascinante. Agora, na construção da minha pesquisa de doutorado, tenho me voltado de forma mais organizada ao estudo dessas imagens. Aqui neste diálogo vou tentar plantar umas sementinhas de ideias sem nenhum fechamento (pois espero dar continuidade à conversa e ouvir o que outros pensam), tentando propor um ponto de vista para olharmos para o retrato.
Na sua dissertação de mestrado, intitulada Sobre fotografia, narcisismo e desejo (UFPE, 2010), meu colega e companheiro de estudos Paulo Carvalho afirma que “fotografar é, antes de qualquer movimento, fotografar o corpo”. Essa frase me toca, pois, outra questão que me interessa é que, além de ser foto de gente (de forma geral), o retrato é foto dos corpos dessa gente. Como o retratado se autopercebe enquanto corpo, atuante e passivo, sujeito e objeto do retrato me interessa. Que formas esse corpo ganha ao ser retratado também. Bem, eis que o retrato é, de forma simplificada, justamente isso: fotografias cujos referentes são os corpos das pessoas. Para Annateresa Fabris, no livro Identidades Virtuais: uma leitura do retrato fotográfico (Ed. UFMG, 2004), ele vai além: “é uma afirmação pessoal, moldada pelo processo social no qual o indivíduo está inserido e do qual derivam as diferentes modalidades de representação”.
Mas não podemos negar que é no corpo em que atuam a tradução de nossas escolhas e afirmações, nossos desejos. Estamos constantemente construindo, reconstruindo, desconstruindo e moldando nossa autoidentidade através dos nossos corpos. E é através da autorrepresentação do seu corpo que o sujeito se anuncia no retrato, que ele se faz imagem, encena seu papel. Não, não vou aqui (ainda) questionar uma tensão na autoria da foto entre fotógrafo e fotografado (mas é óbvio que não são só as subjetividades do modelo que estão em jogo), porém apenas constatar que, em uma relação complexa entre seres e dispositivos, o próprio sujeito se entende por si e se representa, o tempo todo, através do seu corpo. As subjetividades são flexíveis e abertas, nossos modos de ser e estar no mundo são transmutáveis e mutantes. E a fotografia é um desses dispositivos de enunciação de corpos, produzindo e representando subjetividades. E, assim, o retrato fotográfico fala – e muito – através dos corpos fotografados.
É inegável que há um devir-imagem do sujeito desde os primórdios da humanidade. Até Deus, segundo a bíblia, nos fez à sua imagem. Talvez seja essa a nossa mais íntima origem e vocação: ser imagem, mas uma imagem falante, uma imagem para além de um mero “corpo-presença”, como diria Claudio Marra (em Nas sombras de um sonho, Senac, 2008).
A imagem fotográfica é uma maneira assustadora de retratar um corpo. Quem nunca se colocou por horas olhando, dialogando, com um personagem, um modelo, de uma fotografia? Quem nunca se viu sugado, petrificado, quase que com o poder de uma medusa? Não é minha intenção ficar aqui falando do poder de realismo da imagem fotográfica em relação às outras, não é esse o meu tema, nem proponho que seja isso que nos fascina no retrato. Na verdade, o que mais me interessa na ação desse sujeito-corpo que se coloca diante da câmera, que se dispõe a se tornar imagem, é a atuação, a encenação, os gestos, a pose, o olhar que encara um outro que, num contexto futuro, se colocará diante do fotografado-imagem. É esse desejo que move os corpos na atitude de se querer imagem. E o como esse sujeito se representa. É esse estatuto de virtual, de simulacro, que me interessa. Esse corpo que dialoga com um dispositivo que o tornará outro.
Fabris, no livro já citado, diz que “O estatuto virtual, incerto, paradoxal da imagem é hoje o seu estatuto ideal”. O foco do simulacro, do virtual, está na máscara. Não são os estatutos de verdade e falsidade que importam no retrato, nem de semelhança, mas as questões que ultrapassam como linhas de força em diversas direções esse processo de enunciação. Claudio Marra diz que “a fotografia abre sobretudo o espaço do imaginário, isto é, um território no qual o desejo e o sonho tornam-se praticáveis e críveis”. Desejos e sonhos, sim, nos interessam – mais do que verdades e mentiras (onde estariam afinal?).
Os imaginários que ultrapassam a construção dos retratos, sim, nos interessam. E unir imaginário com ficção e com fotografia não é difícil. Para Jacques Aumont, (no livro A Imagem, Papirus, 2002) o “imaginário é o domínio da imaginação, compreendida como faculdade criativa, produtora de imagens interiores eventualmente exteriorizáveis. Praticamente é sinônimo de ‘fictício’, de ‘inventado’”. E para François Soulages (em Estética da Fotografia, Senac, 2010), “a fotografia é a arte do imaginário por excelência” e “a ficção talvez seja o melhor meio de compreender a realidade”, pois a “fotografia não dá a realidade. Em contrapartida, ela pode questioná-la”. A máscara contém mais verdade do que toda imagem que se pretende verdadeira, pois os significados que ela traz se revela aos poucos, diria Antonino Paraggi, personagem da Aventura de um Fotógrafo, de Ítalo Calvino.
Para Paula Sibília (O Show do Eu, Nova Fronteira, 2008), vivemos na contemporaneidade uma tirania da visibilidade. A visibilidade é esse “espaço onde cada um pode se construir como uma subjetividade alterdirigida”. O corpo é feito para ser imagem, imagem mutante, que pode se transformar em outra para o outro. Todos somos constantemente fotografados, retratados. Todos colocamos nossos corpos a serviço de uma ficção-verdade sobre aquilo que queremos ser, ou que queremos questionar, ou que queremos mostrar, apresentar, sempre representando. Nossos corpos se moldam para o outro, o outro que verá o nosso eu(?)-imagem. E como é fácil mudar! Vale (na verdade somos induzidos a) mudar completamente nossos corpos em função dessa visibilidade. O que não vale, me parece, é não ser fotografado (logo, visto). Ser é ser imagem, já dizia a bíblia, lembra? E quem somos nós enquanto esses sujeitos que se autorrepresentam em fotografias? Que subjetividades colocamos em jogo através da encenação de nossos corpos no palco do retrato? Que questionamentos sobre o nosso ser social, coletivo, psicológico, comunicativo levantamos hoje através desse estatuto de visibilidade? Em que grupos nos inserimos agindo assim? Que fábulas inventamos para passar que morais da história?
Enfim, esse diálogo foi só um pedacinho solto, sem o pé no chão, de questões que me movem no momento. Talvez em um futuro diálogo eu já consiga inserir as questões de gênero que são o foco do meu estudo de retratos contemporâneos no doutorado, mas, por agora, eu ainda estou na fase “sentindo intensamente” toda a questão, e, naturalmente, me silenciando mais, tateando mais, naquele momento em que escrever (e ler e ver) me faz chorar.
Bella, amore!
Retrato fotográfico é algo que me move, também!!!
Uma vez eu li a peça de Nelson Rodrigues Álbum de Família, que tem este começo:
ÁLBUM DE FAMÍLIA – Nelson Rodrigues
PRIMEIRO ATO
(Abre-se o pano: aparece a primeira fotografia do álbum de família, datada de 1900: Jonas e Senhorinha, no dia seguinte ao casamento. Os dois têm a ênfase cômica dos retratos antigos. O fotógrafo está em cena, tomando as providências técnico-artísticas que a pose requer. Esmera-se nessas providências, pinta o sete; ajeita o queixo de Senhorinha; implora um sorriso fotogênico. Ele próprio assume a atitude alvar que seria mais compatível com uma noiva pudica depois da primeiríssima noite. De quando em quando,mete-se dentro do pano negro, espia de lá, ajustando o foco. E vai, outra vez, dar um retoque na pose de Senhorinha. Com esta cena, inteiramente muda, pode-se fazer o pequeno balé de fotografia familiar. Depois de mil e uma piruetas, o fotógrafo recua, ao mesmo tempo que puxa a máquina, até desaparecer de todo. Por um momento, Jonas e Senhorinha permanecem imóveis: ele, o busto empinado; ela, um riso falso e cretino, anterior ou não sei se contemporâneo da Francesa Bertini etc. Ouve-se, então, a voz de speaker, que deve ser característica, como a de D´Aguiar Mendonça, por exemplo. NOTA IMPORTANTE: o mencionado speaker, além do mau gosto hediondo dos comentários, prima por oferecer informações erradas sobre a família)
(O speaker é uma espécie de “opinião-pública”.)
SPEAKER
(já na ausência do fotógrafo, enquanto Jonas e Senhorinha estão imóveis)
Primeira página do álbum. Mil e novecentos. Primeiro de Janeiro: os primos Jonas e Senhorinha, no dia seguinte ao casamento. Ele, 25 anos. Ela, quinze risonhas primaveras. Vejam a timidez da jovem nubente. Natural – trata-se da noiva que apenas começou a ser esposa. E isso sempre deixa a mulher meio assim. Naquele tempo, moça que cruzava as pernas era tida como assanhada, quiçá sem-vergonha – com perdão da palavra.
(Desfaz-se a pose. Jonas quer abraçar Senhorinha que, confirmando o speaker, revela um pudor histérico.)
O resto pode ser lido em – http://pt.scribd.com/doc/63437609/ALBUM-DE-FAMILIA-NELSON-RODRIGUES
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Então, depois que eu li esta peça, eu nunca mais na vida – nunca mais – vi um álbum de família da mesma maneira. Em vez de olhar e dizer o “nossa, que lindo!” ou “nossa, que foto linda”, eu passei a investigar os gestos das pessoas envolvidas. Passei a ver o personagem que, diante da cena ensaiada pelo fotógrafo, não está tão feliz ou se desloca no fundo do quadro ou se inquieta ou está tão feliz que ofusca os demais. Passei a buscar aquilo que foge à pose, aquilo que, de certa maneira, desmonta os acordos sociais de determinadas fotografias.
Esta foi uma época em que eu comecei a me perguntar (muito!), com quem a gente aprende a colocar a mão na cintura para tirar fotos, na infância? De onde isso veio? Por que os noivos precisam posicionar os dedos para mostrar aliança em determinadas fotos? Por que fazer imagens do pai abraçando a barriga da grávida, nos books? (Replicando na pose da imagem a cultura do homem provedor e protetor da mulher, em qualquer situação de vida?).
Isso me faz pensar, também, na quantidade de pessoas que hoje não querem mais se engessar em poses e preferem ser fotografados “de maneira natural”, se é que isso é o possível, diante de uma câmera. É possível, Bellinha?
Pensei, ainda, em uma cena do espetáculo que você participou e de quando Rodrigo imitou teu movimento para as câmeras de todos nós. Bella Maia comentou que havia ali um movimento de um bailarino tomando forma no corpo de outra pessoa e trazendo características dessa nova pessoa. Então, eu fiquei aqui refletindo:
– é possível um movimento, pose ou convenção fotográfica se moldar a todos os corpos?
– em que momento um corpo, diante de uma solicitação de pose ou de uma convenção de visibilidade, se rebela e desmonta esse pedido de acomodação a algo que não é dele?
Então, relembro as convenções que são criadas para retratar bandas de metal, de forró, de brega ou os músicos eruditos. Recordo as poses e biquinhos feitos na frente do espelho para o Facebook. As mãos em forma de “legal” que se espalham pelos álbuns dos adolescentes. Os códigos fotográficos das torcidas organizadas. O que estas poses dizem sobre nós? O que elas dizem sobre o que desejamos mostrar? O que elas dizem sobre o que desejamos esconder?
Esta semana muita gente compartilhou no Facebook um site com uma série de GIFs em que as pessoas, famosas ou não, são fotografadas fazendo as mesmas caras em circunstâncias completamente diferentes. (Veja aqui: sobadsogood.com/2013/04/19/15-people-that-look-exactly-the-same-in-every-photo/). Por que a gente não consegue se mostrar, diante da câmera. Por que é tão difícil? Por que se torna fácil apenas quando vestimos um personagem?
O que esse jogo de corpos têm a ver com poder, estrutura social e política, filosofia de vida? O que tem a ver com liberdade e repressão cultural?
Onde o fotógrafo se coloca nisso tudo? Em que momentos ele reproduz ou pondera sobre estas convenções? O que os fotógrafos acham?