O 7 Perguntas de hoje tem um gosto muito especial. Podermos conversar com Gui Mohallem sobre a construção deste diálogo. Em vez de fazer uma simples entrevista de perguntas e respostas, ele abriu o arquivo no Google Docs e algumas intervenções e esclarecimentos foram feitos enquanto ele escrevia e editava a entrevista. Foi um processo inédito e muito significativo para o resultado que vocês lerão a seguir.
Gui Mohallem é mineiro de Itajubá, mas mora em São Paulo. Hoje, por sinal, é o dia em que ele encerra a temporada de exibição do trabalho Welcome Home, na Galeria Emma Thomas, localizada na capital paulistana. Este foi um dos motivos pelo qual nós o convidamos para participar.
O principal deles, contudo, é que Gui há muitos anos vem desenvolvendo um trabalho fotográfico muito cuidadoso, que vai do clique à maneira como ele decide exibir suas imagens. Ele pesquisa aspectos técnicos, discursos e suportes e não sossega até elaborar um diálogo coerente para as suas fotografias.
O desejo de ampliar fronteiras fez com que ele aceitasse convites para projetos como a residência artística na Casa Tomada e a participação no projeto Incubadora, que ano passado realizou exibição dos trabalhos em São Paulo e foi responsável por mais uma parceria na vida de Mohallem: o convite para que Gabriel Bogossian – que fez uma análise cautelosa do trabalho do fotógrafo no projeto – participasse da construção da exposição que hoje encerra em São Paulo.
Gui está feliz com o resultado do trabalho e a repercussão do projeto e nós estamos felizes pelos desdobramentos disso na conversa que vocês podem ler na sequência. Agradecemos a ele por ter aceitado participar da nossa seção e por ter dado tanta atenção e carinho ao nosso convite.
Teu trabalho tem uma unidade estética muito marcante. Bato os olhos em uma fotografia e logo identifico como tua. Como se dá o processo de criação e estudo da estética?
Estudo dois filmes desde 2003 (hoje estou só com o Fujipress 800) e acabei desenvolvendo uma técnica híbrida pra construir essa plástica a que você se refere.
Todo filme tem uma curva, e toda curva tem um pé e um ombro, que é quando a imagem estoura (perde informação) devido ao tanto exagerado de luz que você deixou expor. O que não contam pra gente é o que vem depois do ombro, é o que acontece se você expor muito além do limite divulgado pelo fabricante.
Venho pesquisando nesses 8 anos o que acontece quando se expõe 10, 14 pontos além do ideal, processo que chamei de uberexposição. O que acaba acontecendo é que, além de ter muitas vezes manchas e um contraste diminuído, perco toda a referência de cor. Tanto no escaneamento quando na ampliação manual, minhas fotos começam todas verdes.
A partir daí é um longo processo de lapidação (o gesto é o da pincelada mas a sensação é escultórica) até se chegar à cor e à densidade ideal pra cada imagem. Em média são 70 layers com máscaras; às vezes, um desmentindo o outro.
Desenvolvi uma técnica que me desobriga de raciocinar na hora de fotografar e permite que esse momento seja intuitivo, inconsciente até. Sem nenhum compromisso com o real, com o que aconteceu, construo a estética dos trabalhos com a obsessão do diretor de fotografia e a liberdade do pintor, podendo muitas vezes regressar ao momento obscuro do clique.
Lembro bem de um projeto – Ensaio para a Loucura – em que você convocava pessoas, pela internet, que se interessavam em ser fotografadas de maneira que expunham sua intimidade. Qual é a sua relação com o outro desconhecido? Você encontra uma parte de si nesses personagens ou, pelo contrário, as histórias particulares reforçam as particularidades entre as pessoas? Você busca mostrar uma universalidade do EU ou a singularidade dele?
Como assim universal? A maior parte do tempo a gente está tão sozinho, né? Ninguém sente o mesmo gosto que você, ninguém vê a mesma cor que você. E sentimento então, como a gente comunica? Como a gente tem certeza que compartilha?
Esse projeto da loucura vem um pouco atrás disso, uma busca na direção contrária do isolamento: nessa conversa com o Outro, encontrando a loucura que compartilhamos. Me sinto menos sozinho, menos isolado.
Em Welcome Home, as fotos nos levam a um encontro muito delicado com outras pessoas. Nina Gazire, na revista Istoé, ressaltou um confrotamento com o “estranho” nas imagens dessa série, até por terem sido feitas num ‘santuário queer’. Lembro que o “estranho” foi um conceito que esteve muito associado a trabalhos como o de Diane Arbus e que, muitas vezes, provocou recepções negativas do público. Como você vê a associação desse conceito ao seu trabalho?
Uma das minhas maiores preocupações é não cair na armadilha do exótico: “o que é? quem é? onde é?”. As questões que me interessam vão muito além disso.
O estranho no trabalho da Arbus tem muito a ver com o circense, com o raro. Essas imagens causam um certo desconforto e a primeira sensação é sempre de aflição e/ou compaixão. Vendo o trabalho como um todo é que podemos perceber o quanto da própria fotógrafa está presente nas fotografias, nos afastando um pouco dessas precocidades.
Outro tipo de estranho é simplesmente o não familiar, aquele novo corpo que adentra o universo e vai interagir com as gravidades presentes, gerando primeiro um distúrbio, obrigando a um rearranjo, para depois uma nova harmonia. Quando li o texto da Nina, entendi que ela usou estranho nesse sentido, criando uma rima com a conceituação mais moderna de queer.
Na fotografia – assim como na vida (para mim é uma coisa só) – faço muito uso desse contato com o estranho que desestabiliza. Nesse trabalho especificamente, isso foi muito importante para o processo. Agora, no resultado não consigo associar não.
Em um dos poucos retratos posados nessa série, uma pessoa está com uma boneca enfiada no cabelo, como parte do penteado. Só fui me dar conta disso quando o Lucas (Simões, na é poca do Incubadora) apontou para o detalhe. Não tinha chamado minha atenção nem na hora de fazer a foto, nem na hora de editar. E pelo medo da armadilha do exótico, ela quase saiu da edição.
Nos últimos anos, de alguma maneira, você vem sempre se envolvendo em propostas de criação que estão ligadas à interlocução com outros artistas, críticos ou pessoas que estudam a fotografia. Foi assim com a experiência na Casa Tomada e no projeto Incubadora. O que essas vivências trouxeram de novo para o seu processo de produção?
Tinha uma professora de teatro que falava que a cada gesto novo, era como se inaugurássemos uma nova área do cérebro. Adoro essa imagem da mente se expandindo a partir dos novos movimentos.
Essas duas experiências foram fundamentais para o meu crescimento, não só pelas séries que resultaram, mas de uma forma permanente e progressiva, porque o contatos com as pessoas envolvidas nessas experiências foi – e continua sendo – muito potente.
O novo que essas interações trazem é sempre refletido no trabalho, mas são conquistas pessoais, de postura diante da vida e, consequentemente, do fazer.
Na Casa Tomada, por conta da interação que tive com outros artistas, tão diversos, tão lindos como Maíra Mesquita, Adelita Ahmad e Bruno Baptistelli, aprendi muito sobre o amor, a perda e a solidão. Aprendi também que fotografia é só o nome do suporte em que exponho meu trabalho e a câmera é só uma das ferramentas que utilizo para a expressão. Se eu já tinha liberdade na criação das cores, ali entendi que meu universo de intervenção na imagem poderia ser muito maior.
Na época escrevi um post sobre isso. #dramáaaatico.
Na Incubadora foi bem diferente, porque a questão da intimidade não precisava ser conquistada, ela já existia. Parafraseando Ronaldo Entler no seu primeiro post, a idéia era checar como os trabalhos podiam ser afetados, mas a partir de afetos já constituídos.
Ali eram pessoas muito próximas e com muito mais liberdade pra falar ‘não gostei disso’, ‘falta aquilo’ e ‘cafona’! Ali os trabalhos todos eram de fotografia, o que fez com que a gente se contaminasse com os jeitos de olhar o mundo e de pensar fotografia.
Por conta do Incubadora, reaprendi esse novo jeito de editar as imagens como se fossem cinema, e sosseguei um pouco dessa afobação para me comunicar. Entendi que existe um nível de comunicação que só se alcança com o mistério.
Observo que o corpo tem uma presença significativa em suas fotos, como se ele colocasse em evidência a delicadeza e a existência das pessoas normalmente marginalizadas. E lidar com a delicadeza, com o corpo do outro e com os afetos também faz parte do ofício do educador. Você percebe no seu trabalho essa relação entre o fotografo e o educador? Como seu trabalho com educação influencia seu trabalho autoral?
Quando comecei a dar aulas em 2004, o trabalho como educador preencheu várias lacunas da minha formação. Eu precisava aprender antes de ensinar e, como as aulas eram práticas, acabava descobrindo muitas coisas enquanto fazia os testes. Teoria das cores, pinhole, influências da iluminação, fisiologia do olho são alguns exemplos de assuntos que desenvolvi muito nesse período.
Lidar com esse outro, que tem uma história diferente da minha, me desafiou muito pessoalmente também. Era um esforço contínuo de empatia e de abertura para o novo.
Quando decidi me dedicar ao meu trabalho fotográfico, precisei parar de dar aulas, pois a energia que o ensino demandava competia com a energia que eu precisava pra fazer essas novas investigações internas.
Quando estou trabalhando em algo pessoal, preciso de toda atenção voltada para mim, para uma interioridade que independe do mundo imediato. Quando dou aulas, toda minha atenção precisa estar voltada para o outro, para entender e ajudar seu processo de aprendizado. Pode ser por conta de uma imaturidade que vai passar, mas pra mim isso ainda funciona de um jeito binário.
Hoje, encontrei nos workshops um jeito de juntar as duas coisas (que eu adoro), concentrando essa energia para o outro em períodos determinados.
A solidão é recorrente em seu trabalho, seja direta ou indiretamente. O que é solidão para Gui Mohallem?
Na minha percepção, existe uma solidão que é inerente e incurável, por mais que a gente se debruce nas comunhões, a gente vive e morre com ela. Esse poema do Bukowski diz muito disso, é de um inglês muito fácil, mas não vou me arriscar a traduzir:
no help for that
there is a place in the heart that
will never be filled
a space
and even during the
best moments
and
the greatest
times
we will know it
we will know it
more than
ever
there is a place in the heart that
will never be filled
and
we will wait
and
wait
in that space.
O jornalista Ivan finotti, em texto para a Folha de São Paulo diz que você “vira personagem” em Welcome Home. Muitas pessoas te enxergam nas imagens, especialmente neste último trabalho. Existe algum autorretrato nessa série?
Acho bem significativo a frequência com que pessoas me vêem fisicamente nessas imagens. Isso me surpreende porque não intenciono nem domino essa recepção.
Costumava dizer que era sempre um autorretrato, mesmo que minha figura não se fizesse presente. Sobretudo nas séries de Coney Island, era como se emprestasse as silhuetas das pessoas para falar de mim.
Em Welcome Home aconteceu uma mudança radical na minha postura: de repente existe espaço para o outro. Isso foi gigante e libertador, pois me permitiu editar uma série em que as imagens se comunicam não pela repetição, mas por um fio outro, invisível – mais delicado e sutil.
Esse olhar do expectador que me coloca dentro da imagem aponta para uma coisa mais complexa: de um jeito que ainda não entendi, é como se agora convivêssemos juntos na imagem, fotógrafo e fotagrafado, projeção e outro convivendo dentro do mesmo espaço/sonho.
Não sei nem como agradecer a Gui por tanto apuro e interesse em responder com atenção nossas perguntas. Ainda tô digerindo tudo o que foi comentado. Mas fiquei muito encantada quando ele disse:
“Entendi que existe um nível de comunicação que só se alcança com o mistério”.
Essa entrevista é um verdadeiro deleite, Gui se entregou a ela da mesma forma que sempre se entrega a seu trabalho, mente, corpo e espírito.
Este blog está cada dia mais gratificante (e sei que falo pelas 6)!
Muito, muito obrigada, Gui.
meninas
obrigado vocês, depois dessa maratona toda da exposição, foi muito legal parar e pensar nessas questões. Aprendi um monte.
é nóis!
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