“Não fazemos uma foto apenas com uma câmera; ao ato de fotografar trazemos todos os livros que lemos, os filmes que vimos, a música que ouvimos, as pessoas que amamos.”
Ansel Adams
Os últimos diálogos de Priscilla Buhr e Bella Valle ficaram ecoando dentro de mim, num lugar não muito claro e de bastante inquietação. Na verdade, eu partilho com as meninas alguns sentimentos, especialmente, a angústia que o processo fotográfico tem gerado (vejam os debates que se seguiram nos comentários dos textos). E, com mais questionamentos do que respostas, também venho fazer desse texto algo estritamente pessoal, numa tentativa de reflexão e de encontro comigo mesma e com a fotografia.
Assim como Pri e Bellinha, eu também não tenho fotografado. O trabalho como freela pode ser tão pesado como a rotina de um fotojornalista. Trabalhar em casa é confortável, mas também pode ser muito extenuante. Fotografar, editar e tratar as imagens é a parte mais fácil e mais gostosa do processo. Atender clientes, entregar os trabalhos no prazo, se preocupar com os atrasos de pagamentos, as contas a pagar e toda a burocracia atrelada a um prestador de serviço, cansa bastante. Sem falar do tempo despendido no preparo das aulas e da instabilidade de ser um profissional autônomo.
Isso tudo dificulta o ato de fotografar, desde uma simples e despretensiosa saída à criação de um ensaio. E são tantas as fotografias produzidas nesse mundo audiovisual que, por vezes, eu me questiono: qual o sentido de continuar produzindo ainda mais imagens? É obvio para mim que a fotografia foi o caminho que escolhi para me expressar, que eu tenho muito a dizer e vontade de fotografar muitas coisas, mas me parece óbvio também que é preciso fotografar menos, ou praticar a ecologia da imagem, reduzindo, reciclando e reutilizando, como nos sugeriu o fotógrafo e professor Eduardo Queiroga.
Fotografar com menos desperdício e mais consciência, como nos disse Queiroga, uma fórmula aparentemente simples, mas difícil de por em prática quando é preciso lidar com uma série de conflitos, ansiedade e falta de tempo para fotografar com mais tranqüilidade.
E ainda sentimos uma certa obrigação de produzir que parece ser condição da nossa profissão. Obrigação essa, para mim, bastante castradora. E me questiono qual a origem disso. Quem foi que disse que ter a fotografia como profissão estabelece a obrigação de fotografar sempre e fotografar tudo o tempo inteiro? Quem instaurou essa necessidade-ansiedade? Para que produzir um ensaio fotográfico já pensando na exposição/repercussão que ele terá? Por que a necessidade de mostrar essa fotografia está vindo antes da necessidade de emitir uma opinião e transformá-la em imagem? Quando foi que nós passamos a acreditar que não existem outras possibilidades para a produção fotográfica?
Eu confesso estar cansada de todas essas opressões que fazem parte desse mundo contemporâneo e da rotina que atrapalha meu processo criativo. Observo que meus olhos estão cansados. Cansados dessa enxurrada de imagens, dessa validação do banal como algo precioso. E, como bem pontuou Milton Guran, na Théoria Mostra de Fotografia e Video, cansados desse retrocesso de sofisticação visual.
Acho que meus olhos também estão cansados de não fotografar. E porque não tenho, não temos, fotografado? Será que existe alguma relação dessa dificuldade em fotografar com a super valorização do equipamento em detrimento da pessoa que o carrega? Será que não estamos esquecendo que quem está atrás da câmera é, de fato, o que existe de mais importante na hora de fazer uma fotografia?
Eu tenho a impressão que nós esquecemos que imagens são feitas por gente que carrega no corpo os sentimentos. E é esse corpo que carrega sobre si a câmera e que dança com ela. Fotografar é lidar com nossos sentimentos, com os afetos que sentimos no nosso corpo. E foi preciso que um aluno muito especial me chamasse atenção para isso.
Numa conversa com uma de minhas turmas, um adolescente autista, com uma certa dificuldade em lidar com suas emoções, falou que ele havia aprendido que fotografar era lidar com suas emoções. E foi ele quem me ensinou que sentir medo, desejo, amor, tristeza e alegria interfere no ato fotográfico.
Foi esse aluno quem me fez perceber que um dos motivos que me levou a ser fotógrafa foi sentir no corpo a liberdade que era para mim fotografar, que quando estamos com a câmera na mão, também pegamos em nossas mãos nossas inseguranças, nossas travas, nossos desejos e nossos sonhos. Pode ser uma foto muito simples, com o celular, mas tudo isso está ali.
Será que é preciso lidar melhor com nossos afetos para fotografar mais tranquilamente, sem a ansiedade do resultado, vivendo a experiência que é fotografar, sem se preocupar com a realização de mais uma tarefa? Então seria o ato fotográfico um ato de percepção de si mesmo?
Há poucos dias ganhei uma fotografia que me fez chorar. É uma imagem que fala dos ciclos da vida, de respeito a esses ciclos, que fala também de contemplação e celebração, de ser observador e construtor ao mesmo tempo. Uma imagem que chegou para dialogar comigo, com a minha vida e a minha fotografia. E ela me fez pensar na importância da fotografia pra mim hoje.
Eu preciso fotografar para viver a experiência da fotografia, para dizer o que eu penso e o que eu sinto, para esvaziar o tanto que existe dentro de mim e que chega a transbordar. Eu preciso fotografar para respeitar os meus ciclos, para me respeitar enquanto ser humano, para ter a liberdade de ser quem eu sou.
Pra colar com uma boa cola no coração!
A propósito, Val… mostra a foto que te emocionou tanto…
Acabo de ler uma entrevista com David Alan Harvey na Photo Magazine (edição junho/julho 2011 – Ano 7 – Nº 38). Transcrevo abaixo a primeira pergunta feita a ele e a respectiva resposta:
Pergunta – Como você lida com a idéia, o peso emocional e psicológico de ser um ícone da fotografia mundial? A pressão de ser observado, a expectativa de críticas, a busca da criatividade e inspiração, o cerco de bajuladores, o constante desafio de manter características para saciar o público ou a viciosa cobrança de superação…Temos exemplos e históricos de mentes e artistas brilhantes que recorrem a alternativas, (drogas, alcóol e até suicídio) aos limites humanos, como a própria polêmica e geniosa fotógrafa Nan Golding defendia. Como funciona a bagagem do sucesso no seu processo criativo?
David Alan Harvey – Eu deixo a bagagem do sucesso de lado e faço do meu processo criativo o mais leve possível, ao passo que consigo carregá-lo sem ser lesionado pelo mesmo, sem sofrimento, sem angústia. O processo criativo em si me interessa, esse é meu foco, não a repercussão do produto final. Caso contrário, ficaria escravo dessa expectativa, ficaria preso na ideia de receptividade ou não receptividade e acabaria perdendo a identidade como dono do processo, manipulando para aceitação ou estaria perdido procurando maneiras de me libertar. Isso explica as drogas, álcool, suicídio. Como fotógrafo e pessoa criativa, você não deve se contentar com um plano singular. Você é o mais importante, você primeiro, fazer e reconhecer aquelas fotos como legado, seu melhor, como sua assinatura e libertá-las ao público. Na verdade, o meu trabalho tem notoriedade. Gosto desta palavra. Não sucesso, pois cria um peso maior que qualquer capacidade intelectual psíquica humana é capaz de suportar.
Um modo bem interessante, esse de livrar-se um pouco do peso e da angústia do sucesso, esse de trocar os termos…
valeu o trecho, Ana!