O ar condicionado da sala devia estar em -5°C. Minhas mãos tremiam tanto que quase derrubei a caixinha com as fotos que demorei quase um mês para selecionar. Quando sentei naquela cadeira e comecei a espalhar as fotografias na mesa, meu coração batia tão acelerado que eu tinha certeza que todo mundo na sala o escutava. Fiquei ali, estática, quase não respirava, observando aquele olhar atento e enigmático sob o meu trabalho. Foram instantes de silêncio infinitos até finalmente escutar um “Então, Priscilla…”.
Eis a minha primeira leitura de portfólio. Inesquecível. Nem tanto pelo que ouvi, mas pelo que senti.
Quem nunca gelou diante de uma leitura de portfólio que atire a primeira pedra. Talvez até arrisque dizer que leitura de portfólio sem frio na barriga não existe. Bate uma insegurança mesmo e não só nos fotógrafos iniciantes. Conheço um bocado de fotógrafo que está no batente há um tempão, com trabalhos super consistentes, que dão aquela tremidinha quando sentam diante de um leitor. Mostrar um trabalho é sempre apreensivo. E saber o que as pessoas pensam sobre ele é mais ainda.
Alexandre Belém, do Olhavê, comentou em seu blog algo que, na minha opinião, define super bem as leituras de portfólio hoje: “Uma das experiências mais motivadoras ou frustantes para qualquer autor. (…) Algumas, só servem para… Nada! Ou, no máximo, massagear egos ou acabar com egos. Leitura objetiva e concreta são aquelas que o autor e o leitor colhem frutos“.
O fato é que por mais importante que uma leitura de portfólio possa parecer (digo isso pois em quase todos os festivais de fotografia existem leituras com fotógrafos referência) ela não deve ser encarada como algo definitivo, nem absoluto e sim norteador. A grande problemática, que a torna muitas vezes a experiência de uma leitura traumática, é que os leitores não sabem falar e as pessoas que estão ali para ouvir, não sabem ouvir. Nem tudo que se houve nessas leituras pode ser aproveitado. Não falo de críticas negativas, pois até elas são construtivas, falo de opiniões vazias mesmo. Mostrar um trabalho e ouvir simplesmente um “gosto” ou um “não gosto”, no meu ponto de vista, não acrescenta absolutamente nada. Mesmo que quem diga isso seja o maior bam bam bam do universo fotográfico. Você sai feliz ou triste, pronto. Nada além disso. E muitos leitores se limitam a “carimbar” um trabalho como bom ou ruim, não desenvolvem opiniões, não estimulam um pensamento crítico. Não quero dizer com isso que os leitores precisem dar aulas de fotografia mas é muito mais instigante para quem tá ali, sentado, com as mãos geladas e olhos e ouvidos atentos, ouvir coisas que somem, que estimulem o ato e o pensamento fotográfico. Mas nada adianta também se o fotografo que mostra o trabalho vai ali com a intenção de receber um carimbo. Tudo que for dito vai ser sumariamente ignorado, o que vai importar no final das contas é a aprovação ou a reprovação. É um pouco óbvio dizer que opiniões diferentes das nossas acrescentam, mas não posso deixar de comentar isso. Saber processar as críticas é muito rico no processo de amadurecimento de um trabalho. Ser questionado sobre os “porquês”, ser quase desafiado a olhar para a própria fotografia com outros olhos é delicioso e vale toda a tremedeira.
Em 2010, estive no Fest Foto PoA e resolvi encarar a leitura de portfólio. Com as mãos geladas e aquele frio na barriga típico, mostrei o meu ensaio AutoDesconstrução, que na época estava tomando forma, para Zeca Linhares, Daniel Sosa e João Kulcsar. Para o meu “desespero” inicial, cada um deles me falou coisas completamente distintas, quase o oposto uma da outra. Mesmo com o susto, foi extremamente rico para mim, naquele momento, ouvir tudo que ouvi. Fiquei alguns dias bem confusa, confesso, tentando processar todas aquelas informações, que me levavam cada uma para um lado, mas quando enfim, assimilei tudo, foi muito construtivo e importante para o processo de produção do ensaio e principalmente para a concepção da montagem da minha exposição. Personifiquei um pouco o debate para enfatizar a importância de ouvir bem e entender bem as coisas que são ditas em uma leitura de portfólio. Vale a pena deixar a insegurança de lado e buscar essa troca de idéias de forma aberta e consciente.
Como essa troca é uma coisa muito estimulante para mim, a idéia de escrever esse Diálogo surgiu de uma discussão levantada por Cláudio Feijó no blog do Foto Escambo sobre o Paraty em Foco. Dentro de vários questionamentos em torno do festival, Feijó comentou as leituras de portfólio, falando um pouco do medo que muitas pessoas sentem diante de um leitor, medo esse que vem da insegurança de quem está ali encarando a situação como um julgamento, da postura arrogante de alguns leitores e do formato dessas leituras:
“Eu acho muito impressionante ainda que se faça leitura de portfólio nesse sentido crítico, onde se dá palpites teóricos, palpites técnicos e não uma integração, uma saudação à vida, àquele resquício que a pessoa tem ali, que ela botou aquele afeto, aquela emoção, aquela delicadeza do principiante, ou mesmo de alguns que fazem trabalhos há anos, mas que querem suas referências”.
Em resposta ao Feijó, Iatã Canabrava, produtor do Paraty em Foco, explicou o conceito da leitura de portfólio do Festival:
“Em tese nossa proposta, escrita no catálogo do evento, é que a leitura de portfólio funcione como um mercado de peixe, quem tem o peixe mostra pra quem quer comprar. Fotógrafos mostram para possíveis compradores (galeristas, editores, críticos, organizadores de Festival) mais do que aconselhar se é bom ou ruim o leitor diz se lhe interessa ou não”.
Diante dessas considerações, mais do que saber ouvir críticas, quem quer se submeter à uma leitura de portfólio precisa saber para quem vai mostrar o trabalho e por que quer mostrar. Saber quem está diante de suas fotografias evita muitos traumas. É interessante ter bem definido se o interesse é nortear os caminhos da sua produção ou inserí-la no mercado pois cada leitor tem um perfil, cada leitura segue uma determinada linha (claro que uma coisa não exclui a outra, alguns leitores alimentam seu peixe e ainda compram).
O fato é que há expectativas de ambos os lados: o fotógrafo quer ser acolhido, o leitor quer ver bons trabalhos. E todo tipo de expectativas pode gerar frustrações, é inevitável. Uma boa leitura de portfólio, independente dos fins, deve se dar de forma respeitosa. Por mais imaturo que seja o trabalho apresentado, não cabe ao leitor destruir, bombardear, assumir papel de carrasco. Penso que a partir do momento em que alguém aceita a tarefa de analisar um trabalho, deve-se olhar a fotografia do outro com o mesmo cuidado que se olha para própria fotografia.
Essa questão me lembra Kandisky, que fez uma analogia interessante no livro Do Espiritual na Arte, afirmando que arte não pode ser avaliada da mesma forma que um cavalo à venda: “No caso do cavalo, o defeito importante reduz a nada todas as qualidades que ele possa ter e torna-o sem valor. Com a obra de arte a relação é inversa: uma qualidade importante reduz a nada todos os defeitos que ela possa ter e torna-a preciosa”. Talvez se alguns leitores valorizassem mais as coisas boas que vêem do que as ruins, as leituras de portfólio não teriam essa fama toda de bicho papão.
Massa guria! 7 rules…
Muitíssimo bem escrito. Super bem ponderado o texto
Gostei do texto. Tirou algumas dúvidas que tinha, reforçou algumas ideias que eu fazia. Valeu!
Alguém finalmente falou direito sobre leitura de portfolio.
E eu realmente acho que a maioria dos problemas com leitura de portfolio é de quem é lido, mesmo que rolem opiniões vazias de leitores algumas vezes.
Todo mundo quer ser lido, mas ao ouvir crítica, não conseguem suportar e criam o tal bicho papão…
A posição do leitor é cômoda, ele pode falar o que quiser, mas é óbvio que a maioria é mais preparada do que quem vai ser lido. Ouvir até um “não gostei” (e mais nenhuma explicação) já vale, pq se você respeita aquela pessoa de alguma maneira (se você está ali mostrando, imagina-se que respeita, admira, sei lá), pode tentar entender depois como ela pensa, o que ela gosta, pq não gostou, e aí sim pensar em levar aquilo em conta ou não. É você que tem que fazer essa análise depois. Penso que muita gente tem preguiça de pensar.
Uma opinião rasa como “não gostei” (chamar “não gostei” de raso também pode ser discutível, já que muita gente reclama de ter que ficar explicando sobre o trabalho) pode gerar mil reflexões se você quiser, é só não ter preguiça de pensar.
devia ter botão de curtir aqui! =)
Ou “Favorite” (do twitter)! 😉
Oi, Priscilla, bom te ler. Deu até vontade de meter o bedelho, de dar um pitaco. Acho que o melhor motivo pra mostrar um trabalho é dar a cara a tapa (às vezes o tapa vem…), se expor, sair do conforto do ego e confrontar-se com alguém que, espera-se, seja uma interlocução qualificada. Esse encontro pode ser mercado de peixe, massagem no ego, terapia, afirmação de autoridade, papo de boteco, entre outras possibilidades. A gente tem que estar preparado para o que vier. E a boa leitura é a que faz o teu trabalho se mover, é aquela da qual não se sai incólume. Não importa se o leitor te tirou o chão, se te mimou com elogios, se encheu a boca para citar Deleuze, se passou ventando pelas fotos sem nem olhar direito, se te convidou para expor. A questão é se continuas no mesmo lugar depois de sair, eu quase nunca estou. Sempre gosto deste momento de conversa, mesmo quando não gosto. Um beijo.
que legal, você por aqui Fernando! pois é.. concordo contigo. é bem como Fábio também comentou.. quem se dispõe a fazer uma leitura de portfólio precisa saber ouvir e absolver isso de forma construtiva, sair de uma leitura sem se abalar não vale de nada. até os “tapas” que a gente recebe podem fazer bem.. ficam latejando alí.. e instigam a gente!!
ao ler teu texto, pri, lembrei imediatamente deste outro aqui, escrito por clício barroso http://www.clicio.com.br/blog/2010/critica-curadoria-e-fotografia/ creio que são abordagens que se completam.
Lembro de uma oficina que fiz com Mateus Sá com o tema “Digital = Identidade”. Eu não estava sabendo que teria leitura de portfólio dos participantes. Foi um surpresa dura, ansiosa, geradora de tsunamis no estômago. Com “portfólio” coletado de um início de coleção dos negativos escaneados dias antes e escolhidos na noite anterior pra mostrar, entreguei com muita dúvida, medo, insegurança, timidez,… Mateus foi muito bom, desenrolou com maestria todos os portfolios, e no meu caso, iniciante+aspirante+desejante, foi um grande norteador/incentivador. Graças a essa leitura, hoje tenho alguns planos novos, precisando, sempre, de conhecimento, amizades e um pouco de sustento pra andar com eles.
Lendo o texto e os comentários aqui fico na dúvida se vou tomar uma cerva antes de uma leitura dessas, ou uma dose extra do meu remédio pra pressão, ou um lenço num bolso…
De repente até uma vassoura e uma pá serviriam, né!
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